Supostas palavras de piedade e consolo

É verdade, sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam (Romanos 8:28). Apesar de divina e verdadeira, a sentença, cuja essência transborda de esperança, consolo e alegria, pode ser bastante agressiva (ofensiva) se usada negligentemente, mais especificamente, se usada sem conhecer o coração humano quando diante do sofrimento.

Por exemplo, quando tínhamos o diagnóstico de que Nina tinha síndrome de Patau, também já tínhamos nossas passagens de avião compradas para Campinas-SP. Na época morávamos em Cabedelo-PB e, apesar de gostarmos muito de lá, a mudança foi tanto uma sugestão médica, quanto uma opção pessoal. Médica, porque os hospitais de João Pessoa-PB, segundo alguns profissionais da área de saúde nos disseram, não estavam preparados para caso precisássemos de uma intervenção cardíaca pós-parto. Pessoal, porque queríamos estar ao lado de nossos familiares, amigos próximos e igreja (enviadora).

Uma semana antes da nossa viagem, ouvimos a mensagem dominical da nossa igreja de Campinas online e ao vivo. Ao final do culto, nosso sábio pastor, sem saber que estávamos assistindo, orientou a igreja: “Zambelli e Karen estão vindo para cá. É muito provável que muitos de vocês queiram, agora, consolá-los. Deixe-me dizer, vocês não precisam falar nada! Vocês não têm que falar. É provável que você não saiba o que falar e, quando falar, não saia da forma como você gostaria que saísse. Assim, mesmo que você não consiga se controlar e vai falar, diga ‘estou orando por vocês.'” (As palavras não eram exatamente estas, mas a essência é fiel ao que relatei aqui.)

Quando chegamos em Campinas e fomos ao culto, ouvimos de dezenas de amigos e irmãos na fé: “estou orando por você(s).” Foi consolador saber disso. De fato, eu nunca estive numa posição tão paradoxal entre alegria, tristeza, paz e luta em toda minha vida. Costumo dizer: “ainda que eu não saiba mensurar em números, foram as orações das centenas de pessoas que nos mantiveram de pé.” [1]

Porém, apesar do sábio conselho pastoral, alguns arriscavam frases aparentemente piedosas para nos consolar, tais como:

  • “Deus é soberano e sabe o que faz;”
  • “No final tudo dará certo;”
  • “Ainda bem que você são fortes;”

Entre as frases, alguns versículos eram citados, mas nenhum deles mais que a primeira parte de Romanos 8:28 (na versão Revista e Atualizada): Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus.

David Powlison, no artigo I’ll never get over it [Eu nunca superarei isso] (JBC 28:1 [2014]: 8-27), escreveu:

“Quando você está no início do processo de enfrentar a dor, é um insulto alguém lhe dizer: Deus vai fazer algo bom através disso.”

Ainda que insulto não fosse bem a palavra que descrevia meu sentimento, eu me sentia como se as pessoas estivessem depreciando o meu sofrimento. Paul Tripp e Timothy Lane, sobre isso escreveram:

As Escrituras nos lembra que nunca devemos considerar o sofrimento de forma leve, porque Deus não o considera assim. A mensagem central da Bíblia é que Deus não passou por cima do sofrimento, mas tomou medidas custosas para terminar com ele. Ele nos enviou um Redentor, Seu filho Jesus Cristo, que sofreu ao nosso lado para nos dar esperança, propósito e perseverança em meio às lutas da vida. (How People Change, 2006).

Foi interessante notar que os amigos mais próximos pareciam evitar o assunto que nos fazia sofrer. Ainda suspeito que esse foi um passo orientado pelas palavras do pastor; e não foi ruim. Por outro lado, era justamente com eles que eu mais queria abrir meu coração. De fato, eu não tive o constrangimento de lhes dizer que não tivessem medo de falar sobre isso comigo. (Quero salientar que essa era uma forma pessoal de eu lidar com aquele sofrimento: conversar com meus amigos.)

Com pouco tempo em Campinas eu notei quais eram as pessoas que mais conseguiam falar ao nosso coração, que pareciam ser mais sábias e ter conselhos eficientes para lidarmos com a dor que sentíamos:

  1. Pessoas que havia passado por situação semelhante e, depois de vivê-la, conseguiam discernir erros e acertos durante a caminhada de intenso sofrimento. Elas nos consolavam com consolações que já haviam recebido de Deus (2Co 1.3-7).
  2. Pessoa que havia um claro relacionamento com Jesus Cristo, cuja leitura bíblica não era como de um manual de instrução, mas como uma fonte para melhor conhecer a Deus. Ouvir deste grupo sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam era diferente (ainda que uma boa exegese da passagem mostra que ela não está tratando sobre este tipo de sofrimento).

O sábio escreveu: Cada coração conhece a sua própria amargura, e não há quem possa partilhar sua alegria. Em outras palavras, há tristezas (e alegrias) que ninguém, senão a própria pessoa, para compreendê-las. É difícil explicar o que alguém sente em meio à dor e parece ser impossível haver completa simpatia com as diversas e singulares situações, mesmo porque, ainda que alguém tenha passado por situações semelhantes, cada pessoa responde de uma forma diferente à dor.

Agradeço ao Senhor por ter me agraciado ao permitir que eu ouvisse cada suposta palavra de consolo. Sim, ainda que muitas vezes o consolo não passasse disso, aparente consolo, cada pessoa que tomou o risco de falar comigo tinha uma sincera e positiva intenção. Por detrás de frases como, “sei que está sofrendo, mas Jesus sofreu por você muito mais,” ou “Deus é bom demais para não permitir que nenhuma tentação seja maior do que vocês possam suportar,” ou ainda “sua convicção sobre a ida de bebês para o céu é boa,” sempre esteve presente alguém que não queria que estivéssemos sofrendo. (Entretanto, eu ter respondido positivamente a essas frases não dá a ninguém o direito dela negligenciar o discernimento e a sabedoria de Deus para consolar e usar inapropriadamente as Escrituras.)

Como suponho que tenham percebido, as frases acima não estão teologicamente equivocadas[2]. No entanto, estar teologicamente correto não é suficiente. Você pode estar teologicamente correto e, ainda assim, não providenciavam consolo algum; “qualquer semelhança com a história de Jó é pura ironia.”  É verdade que Jesus sofreu mais do que eu sofri. É verdade que Deus não permitiria que eu fosse tentado numa medida maior do que eu pudesse suportar. É verdade, eu creio que bebês, ou humanos incapazes de cognitivamente crer em Jesus, estão numa condição singular diante o convite soteriológico de Jesus. No entanto, nenhuma dessas verdades foram encorajadoras para eu lidar com o sofrimento de ter uma filha ainda no útero da minha esposa, cuja expectativa de vida era de poucas horas, senão poucos dias, devido sua condição congênita. Não basta estar informado a respeito do conteúdo bíblico. O que é a verdade sem o amor? O que são palavras fora do contexto de um livro (sagrado), cuja centralidade está num Deus zeloso que ama Sua obra prima? (Aliás, um Deus tão pessoal que se tornou como nós para que pudéssemos nascer de novo, tendo nossas partes materiais e imateriais restauradas.)

Enfim, quando comecei a escrever esse post eu não pretendia usar tantas linhas discorrendo sobre minhas próprias experiências. Meu desejo era alertar os leitores sobre o cuidado que devem ter quando decidirem abrir a boca [falar algo] num momento tão delicado diante o sofrimento de alguém. Tenho certeza que querem agir como um sábio: A língua dos sábios torna atraente o conhecimento, mas a boca dos tolos derrama insensatez (Pv 15.2).

Concluindo, permita-me ser prático, breve e claro. Quando decidir consolar alguém em meio ao sofrimento, nunca se esqueça:

  1. Que sua motivação seja o amor de verdade.
  2. Que sua abordagem seja a verdade em amor.

E o que é amor? O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca perece… (1Co 13.4-8) Quer um exemplo? Nisto conhecemos o que é o amor: Jesus Cristo deu a sua vida por nós, e devemos dar a nossa vida por nossos irmãos (1Jo 3.16).

E o que é a verdade? Disse Jesus: eu sou o caminho a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim. (Jo 14.6). Verdade é a interpretação correta de tudo e de todos, somente possível com as lentes de Deus.

Trazer palavras de consolo não é como fazer um bolo. As mesmas palavras podem ajudar um amigo e ofender outro. Tenha certeza de sua motivação e abordagem. Sugiro que, como passo prévio e fundamental, ore a Deus para obtenção de sabedoria (cf. Tg 1.5). Depois de orar, conheça além da causa que traz sofrimento – conheça a pessoa. Não consolamos os problemas, mas as pessoas que sofrem com os problemas. Se você não tiver disposição para isso, eu sugiro que fique em silêncio e verdadeiramente chore com os que choram (Rm 12.14). Até o insensato passará por sábio, se ficar quieto, e, se contiver a língua, parecerá que tem discernimento (Pv 17.28).

Que nós possamos ser parte do ribeiro que nutre as raízes de nossos amigos e amigas quando o intenso calor da vida atingi-los (cf. Jr 17.7,8)

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[1] Compartilhe seus pedidos de oração com amigos que conhecem e conversam (oram) com Deus. Há dezenas de razões apresentadas na Bíblia para fazermos isso. E sabe qual é a melhor? A possibilidade de ter seu pedido respondido!

[2] Refiro-me especialmente as duas primeiras frases. A terceira é minha opinião bíblica.

Todas as passagens bíblicas fora extraídas da Nova Versão Internacional (NVI).

2 pensamentos sobre “Supostas palavras de piedade e consolo

  1. Olá Zambelli, seu texto traduz um sentimento que compartilho. Ouvi também: “você poderá ter outro filho”, “você é jovem”, “seja forte”, “quem tem um filho especial é porque é especial”… Enfim, quando estamos nessa situação seja o que for que nos falem, vamos interpretar de forma negativa, portanto, também precisamos orar para pedir sabedoria e interpretar da melhor forma o consolo de nossos próximos. Precisamos compreender com a “cabeça” e com o coração.

  2. Zambelli, muito legal o seu texto! Pra mim o “vai dar tudo certo” era muito cruel! Quando vinha junto com “eu conheço fulano que é prematuro, olha o tamanho do moço que ele se formou” dava vontade de chorar porque as pessoas falavam sem entender de fato a extrema prematuridade e riscos da Elisa! Na época, quanto aos comentários como estes, meu cunhado nos lembrou de uma música linda que diz “só quem sofreu, sabe avaliar quem sofreu, sabe se identificar, sabe ter o mesmo sentir”! Claro que a referência aqui é Cristo, mas se torna verdade para os “conselheiros” de tempos difíceis! (Eu me lembrava desta música ser baseada em texto bíblico, mas não estou encontrando a referência… Então não tenho certeza!)

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