Na semana passada eu tive a oportunidade de lecionar numa faculdade teológica no tema luto. De forma didática, usei como pano de fundo a história da minha família com a Nina.
Hoje, quase dez dias depois, deparo-me com um belíssimo e agradável texto no mesmo tema, uma reflexão de um pastor sobre seu luto sob o título: “Crocs cor-de-rosa, rios de água quente e o luto de quem ainda não mergulhou,” por Emilio Garofalo Neto.
Indico a todas as pessoas este texto em HD de emoções e vida. Abaixo:
“Faz um tempo eu quis, fazer uma canção, para você viver mais.”
Sunt Lacrimae Rerum. Há lágrimas nas coisas. Essa frase misteriosa, e de difícil tradução, aparece na obra clássica A Eneida, de Virgílio. Não, eu não li. Mas li o excepcional Cloud Atlas de David Mitchell, onde ele cita essa expressão latina num momento chave da história. Nessa história, vidas se cruzam, aproveitando as dores de eras distintas, refletindo sobre tempo, amor e morte; vislumbrando como nossas vidas se tocam, como um “oceano formado por uma infinidade de gotas”. Há lágrimas nas coisas.
Meu pai faleceu em Agosto de 2015, ainda relativamente novo, aos 62 anos. É claro, em comparação aos espanhóis na Idade Média ou romanos no primeiro Século, ele viveu muito. Mas foi muito longe do que eu gostaria. Ele se foi no meio dos planos. Com muito a pensar, a fazer, a viver. Com sua única neta ainda pequena que segue falando do dia em que jogou bola com ele na sacada de seu apartamento em São Paulo. E o luto fica, e penso que ele não irá embora nunca.
São vários os autores que escreveram observações sobre seus lutos. C.S. Lewis, por exemplo, publicou suas impressões de maneira célebre a respeito da morte de sua esposa Joy. Não pretendo fazer contribuição nesse nível nem trazer palavra definitiva sobre o assunto. No máximo, podemos refletir e destilar um pouco do que aprendemos na casa do luto. Salomão falou que é melhor ir à casa de luto do que à casa de festa, pois ali nós entendemos como a vida funciona. Papai certa vez me disse ter ficado positivamente assustado com esse insight do velho rei de Jerusalém. Como pastor nos últimos 8 anos, venho observando que as pessoas têm reações muito diferentes ao falecimento dos seus. Não há um único tipo de luto. Talvez haja tantos tipos quanto há pessoas. Mesmo em minha família vejo isso. Autores diversos me ajudaram com suas perspectivas sobre morte e vida; você verá um pouco desta ajuda que recebi escorrendo neste texto. Se ele servir para ajudar ao menos um enlutado, já terá valido. Ainda que ninguém tire proveito, valerá pela honra a quem honra é oferecida, e agradecimento a quem agradecimento é devido. Sem falar na glória daquele que escreveu a meta-história. Este texto foi planejado, pensado e filtrado em Outubro, num final de tarde após um dia exaustivo e divertido brincando na água quente. Apenas agora tive coragem de dar forma final. As coisas têm lágrimas.
Quando num final de tarde no belo Rio Quente, minha filha perdeu sua Crocs, isso me fez pensar em meu recém-falecido pai. A cabeça da gente faz rápidas e estranhas conexões, muitas vezes. Explico como foi. Em Outubro de 2015 fomos eu, esposa e filhota (com imperiosos e maravilhosos 2 anos de fofura) passear em Rio Quente, resort de águas termais no estado de Goiás, perto de Caldas Novas. Ali havia sido local de muitas viagens de nossa família quando eu era criança. Inúmeras horas foram gastas naquelas piscinas quentinhas do parque das fontes… As fortes memórias das brincadeiras com meu pai e irmãos na piscina não se esvaíram com o tempo. Não tem rio nesse mundo capaz de levá-las para longe.
Havíamos desde o início do ano nos planejado para levar a Dedé, nossa filha, para conhecer o Rio Quente. Com o falecimento do pai em Agosto, cogitamos cancelar. Mas, precisando do descanso, e entendendo ser uma forma de honrar os tempos tão bons que havíamos tido por lá, prosseguimos. E foi deleite sobre deleite. Picolé de uva, batata frita, bebidas adultas, bebidas adolescentes, piscina, piscina e mais piscina.
Num final de tarde, após horas e mais horas de deleite nas águas quentes, chegou o tempo de ir de volta para o quarto. A fome apertava e ainda havia o longo ritual de banho a ocorrer antes do jantar. O parque, com suas diversas piscinas, é entrecortado pelo rio quente que banha a região, de forma que há pequenas pontes conectando áreas diferentes do local. Anelise, minha esposa, foi com Débora no colo na minha frente. Eu ia atrás, levando telefones, baldinhos, toalhas e calçados; inclusive a linda crocs cor-de-rosa que acende a cada pegada. Eu trouxera do exterior essas sandálias e Dedé as amava muito, mostrando para todo mundo como ela acendia ao pisar forte. Anelise e Débora passaram a ponte e naquele final de tarde a luz estava particularmente terna, indelevelmente doce. Elas estavam benditamente iluminadas com cabelos molhados e sorrisos satisfeitos. Parei na ponte para tirar uma foto delas. Tentando abrir o celular, derrubei um dos pés dacrocs no chão. Ela quicou e caiu da ponte no riozinho que passa quente e veloz. “Minha crocs caiu!”. E lá foi papai correr atrás dela.
Passei os quarenta minutos seguintes freneticamente tropeçando rio abaixo atrás da crocs, enquanto as duas esperavam. Eu descia e pulava e tentava ser mais rápido que a vida. E enquanto o fazia, estranhamente eu não parava de pensar no meu pai, que falecera meros 45 dias antes. Não consegui achar. O pé direito ficou para sempre sem par. E eu sem pai.
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Como é lindo e encorajador ver o coração de alguém que ama a Deus e tem nele a sua esperança. Belíssimo texto. Louvo a Deus por seu carinho e incomparável poder em nos fazer ver nosso coração mesmo quando não conseguimos enxergar nem um palmo diante de nós.